O QUE O MUSEU DEVE A CARLOS ESTEVÃO
NÃO faz muito tempo passou por Belém um jornalista do “Correio da Manhã”. Dirigia-se à Norte América como enviado especial daquele grande órgão da imprensa brasileira. Nos poucos dias que permaneceu nesta capital, o jornalista fez várias visitas, e entre estas, uma ao Museu Paraense Emílio Goeldi. Nesse estabelecimento, que é um instituto científico, o confrade carioca conversou com o diretor a quem conferiu o título de doutor, e dando à palestra a forma de entrevista, enviou-a ao seu jornal numa peça bem escrita, que o conhecido diário estampou na sua edição de 27 de julho último. É estranhável que, em tal assunto, não se faça a mais leve referência ao derradeiro diretor do Museu, o saudoso e ilustre cientista Carlos Estevão. Não é a primeira vez que assim acontece. Ha o indisfarçável empenho de apagar ou obscurecer a obra daquele esforçado batalhador. Qual o intuito desse propósito? Não será fácil atinar. Entretanto, Carlos Estevão trabalhou tenazmente, durante quase 15 anos, pelo engrandecimento da casa cuja direção lhe foi entregue em 1930 pelo sr. Magalhães Barata. Quem visitou o Museu durante a direção do grande apaixonado das coisas da Amazônia, poderá bem julgar a sua obra. A falta de técnicos que a entrevista a que estamos nos reportando faz ressaltar, não é de hoje, e o problema seria resolvido por Carlos Estevão, se a sua saúde já não andasse tão abalada. No momento não seria possível importar cientistas que tais. E o então diretor, já hoje quase esquecido, tinha a intenção de formá-los no próprio Museu, com gente moça e capaz. Assim, enviou ao Ceará duas das suas funcionárias para que se especializassem em Piscicultura, uma das quais seguiu, posteriormente, até ao Rio, obtendo ótima classificação em concurso em que se inscreveu.
Duas outras fizeram o seu curso com o muito notável etnólogo Curt Nimuendajú. Outras duas deveriam partir para o Rio e São Paulo afim de fazer cursos de especialização. Para ampliar os trabalhos que dirigia, Carlos Estevão pediu ao governo o aumento do quadro dos funcionários com a criação dos cargos de chefes de geologia, botânica e zoologia. Auxiliares competentes e dedicados, como os drs. Raimundo Dias e Rubens Lima, foram obrigados a afastar-se por algum tempo do Museu, o que fizeram com a intenção de voltar. Mas, a maldade humana mudou o rumo das coisas, e outros auxiliares também se retiraram e, como aqueles, não mais regressaram. Foi no Museu de Carlos Estevão que nasceram as primeiras experiências, e que se realizaram os primeiros estudos para a cultura do pirarucu, e foi de lá que partiram os primeiros alevinos, que o então presidente Getúlio encontrou e admirou adultos nos açudes do nordeste. O sistema de lagos existente no Museu para criar peixes, é realização de Carlos Estevão. Da dedicação de Rubens no Horto Botânico e de Emília Dyer no orquidário pôde dar testemunho o sr. Felisberto de Camargo, que os chamou para o Instituto Agronômico, assim que soube do seu afastamento do grande parque científico.
Um curso de entomologia criado na direção de Carlos Estevão, não pôde ser concluído, apesar de adiantado, por isso que o professor que o ministrava foi transferido para a Capital Federal. Infelizmente, o mais grandioso plano de Carlos Estevão para dotar esta terra de um Museu digno dela, plano gigantesco, não foi possível levar a efeito. Era a construção de um edifício suntuoso e apropriado, que encheu de admiração o arquiteto, que lhe desenhou a planta, que deve estar exposta em uma das salas onde pôde ser vista. Nesse palácio encantado haveria dois Museus: — um para o cientista, e outro para o público. Em galerias seriam instaladas as salas de geologia, a terra; a seguir a de botânica, as plantas; depois, a de zoologia, os animais; e finalmente a de etnologia, o homem. Carlos Estevão teria realizado esse seu grande sonho, pois o governo federal faria erguer o edifício, se não fossem os entraves trazidos pela guerra.
Em 1930 passou por esta cidade, a bordo do “Almirante Jaceguai”, um cientista de alto renome, o dr. Olivério Mário de Oliveira Pinto, assistente de zoologia do Museu Paulista. Este jornal, por intermédio de Alexandre Andrade, o entrevistou naquele transatlântico. Declarou o dr. Oliveira Pinto: “Minha impressão mais forte de naturalista, tive-a visitando pela primeira vez o Museu Goeldi.” Referiu-se, depois, ao que corria no Sul, isto é, que devido à crise da borracha, tinha o famoso estabelecimento sido atingido em cheio pela incúria ou malquerença dos governos. “Eis senão quando ao conhecê-lo de visu, tenho a grata surpresa de encontrá-lo redivivo e fundamentalmente reconstituído pela dedicação e zelo de dois devotos apaixonados na natureza, a cuja orientação e competência estão atualmente entregues os seus destinos”. Depois, assim se expressou: “Voltando naturalmente minha atenção em especial ás aves, passei a admirar não só a amplitude dos viveiros em que se acham, por assim dizer, em liberdade, exemplares do que o nosso mundo alado oferece de mais garrido e mais vistoso, mas ainda a profusão e variedade dos que vivem a salvo de qualquer artifício capaz de forçá-los ao cativeiro, empoleirando-se nos galhos e nidificando nas árvores, na mesma tranquilidade e segurança com que o fariam nos sítios para os quais os talhara a natureza”. Prosseguindo, o entrevistado falou nestes valiosos termos: “Recebido cordialmente pelos doutores Carlos Estevão e G. Hagmann, travei conhecimento com a sua preciosa biblioteca, onde fiz questão de admirar a celebre obra de Goeldi sobre a majestosa família dos tucanos, que sabia ali existir através de referências. A seguir deram-me aqueles distintos colegas a honra de conhecer os desenhos originais de uma iconografia dos mamíferos amazônicos, obra esplêndida, em curso de preparação. Ao sair dali, num dos bancos do jardim paradisíaco, em palestra amável, confiou-me o dr. Carlos Estevão os seus largos projetos de ampliação e aperfeiçoamento do Instituto que dirige. Já com os melhores recursos que lhe promete o governo, já com a aplicação inteligente das rendas que o mesmo produz”.
O Museu possui uma importante coleção de material africano que não sabemos se está exposta, doação do coronel José Júlio de Andrade por deferência a Carlos Estevão, que era guardada em duas montras, tudo etiquetado e relacionado (1939). Só em 1933, três anos apenas de direção, Carlos Estevão dotou o Museu de vários melhoramentos e reformas, como abrigo dos quadrupedes, tanques das lontras, aquário, viveiros de plantas, gaiola das feras, tanque do jacaré grande, gaiolas dos mutuns, roedores e maracajás, ninhos para garças, gaiola das araras e urubus, obras na biblioteca, caixas para peixes, muros das av. Independência, Gentil Bittencourt e trav. 9 de Janeiro, etc. etc. etc.. Não nos parece, pois, de justiça, que se tente esconder ou apagar o trabalho e o valor desse homem que tanto tinha de modesto como de sábio: Carlos Estevão de Oliveira.
Belém, PA. Folha Vespertina, 05/08/1946
Belém, PA, Folha Vespertina, 05/08/1946
